Artigo: Sobre o uso abusivo de jogos eletrônicos: quando a realidade se apresenta ‘nua e crua’ demais
Quando a realidade se apresenta “nua e crua” demais, cheia de angústias, o refúgio em um mundo de fantasia pode parecer o oásis no deserto.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), no seu mais novo manual de classificação de transtornos mentais e de comportamento, a CID-11 (ainda não lançada no Brasil), classificou pela primeira vez o uso abusivo de jogos eletrônicos como um transtorno mental. Na prática, a nova classificação coloca o uso abusivo de jogos eletrônicos na mesma prateleira dos transtornos de dependência, como a dependência de álcool e outras drogas e de jogos de azar.
Essa nova classificação mostra que o uso abusivo de jogos eletrônicos está crescendo em todo o mundo e que esse problema está começando cedo demais. Os pais de crianças pequenas sabem como os jogos eletrônicos prendem a atenção delas, e como pode ser difícil conseguir que a criança desenvolva outros interesses que não o videogame. Uma pergunta se faz importante: como os jogos eletrônicos prendem tão intensamente a atenção das pessoas, sejam crianças, adolescentes ou adultos?
Fisiologicamente, a resposta mais simples é: os jogos eletrônicos oferecem estímulos em excesso e isso “vicia” o cérebro, fazendo-o se satisfazer apenas na presença de estímulos intensos demais. Assim, a leitura de um livro ou uma simples conversa com amigos pode parecer “sem graça” para um sistema nervoso “viciado” em dopamina. Isso é verdade, o sistema nervoso pode se acostumar a se satisfazer apenas com estímulos dessa natureza. Contudo, a ausência de estímulos intensos pode facilmente diminuir esses efeitos no cérebro, fazendo-o rapidamente se acostumar a se satisfazer com outros estímulos, menos intensos. Existem outras respostas mais adequadas para compreender como os jogos eletrônicos estão se tornando dominantes nas vidas de muitas pessoas.
A primeira delas é: os videogames transportam as pessoas para um mundo de fantasia. Na verdade, isso não é novo. Nós gostamos de entrar em mundos de fantasia. As histórias mitológicas transmitidas oralmente pelos nossos antepassados, os livros de romance sobre amores impossíveis ou os mais recentes filmes de ficção científica, todos transportam as pessoas para um mundo de fantasia. A diferença, além da quantidade maior de estímulos oferecidos pelos jogos eletrônicos, é a capacidade de imersão da pessoa nesse universo fantástico. Nos videogames, os jogadores não apenas consomem histórias sobre outros mundos, mas assumem o papel de personagens centrais nesses universos. Em outras palavras, não apenas recebem histórias prontas, mas controlam os personagens e desenvolvem as suas histórias.
A imersão maior produz uma relação diferente com os jogos eletrônicos. “Quando você tem um papel no RPG, você não precisa se preocupar com seus problemas de timidez, baixa autoestima. O desempenho do seu papel com seu personagem te dá a sensação de utilidade. Não tem outra atividade que cumpra essa satisfação pessoal tão bem quanto o RPG” (Heber Silva, autista e gamer). Ainda que o RPG não seja exclusivamente um jogo eletrônico, a facilidade de acesso aos jogos eletrônicos com os mesmos elementos dramáticos do RPG aumenta o seu poder de produzir dependência. E ele ainda completa: “Melhorar seu personagem no jogo é conseguido mais facilmente do que melhorar na vida física.”
Em 2017, uma pesquisa de Maísa Morozimato e colaboradores apontou que “a fobia social leva o indivíduo ao uso da internet, pela ansiedade que as relações sociais geram, protegendo-se em relações virtuais. O uso excessivo da internet leva a sintomas de ansiedade quando muito tempo afastados do computador, estabelecendo uma relação de retroalimentação sem fim”. Acredito que essa relação entre ansiedade e internet aconteça também entre transtornos mentais em geral e jogos eletrônicos. Assim, pessoas com dificuldades sociais podem facilmente encontrar nos games uma fonte de prazer e sucesso pessoal.
Essa fonte de prazer e sucesso pessoal pode exercer uma função tanto positiva quanto negativa na vida da pessoa. Encontrar um oásis de alegria no meio de um deserto de angústia claramente é uma boa descoberta. A vida pode ficar mais leve assim. Contudo, existe um problema se o oásis de alegria faz a lpessoa esquecer que ela vive em um deserto de angústia. A angústia é um sentimento necessário para a vida, ela nos mostra que precisamos mudar, que precisamos nos esforçar para resolver os problemas. Sem a angústia, podemos nos acomodar e deixar os problemas como estão. Os jogos eletrônicos podem exercer essa função na vida das pessoas, a de imergi-las em mundos de fantasia e satisfazê-las, enquanto a vida real segue se acumulando de problemas.
Quando a realidade se apresenta “nua e crua” demais, cheia de angústias, o refúgio em um mundo de fantasia pode parecer o oásis no deserto. Nesse ponto, o uso abusivo de jogos eletrônicos é apenas mais um dos infinitos refúgios que podemos construir. Enquanto muitas pessoas se refugiam nos universos fantásticos dos videogames, outros se utilizam do álcool e das drogas ilícitas, e outros das drogas lícitas, como os medicamentos, para suportar as angústias da vida, e outros podem se “viciar” em esportes ou em sexo ou mesmo em pornografia (dependência que, como a dos jogos eletrônicos, está aumentando). Aqui, cada pessoa pode se utilizar da sua “droga de preferência”, como se costuma falar em grupos de dependentes químicos. Nesse ponto, a dependência dos jogos eletrônicos não possui nenhuma especificidade, é apenas mais um refúgio possível para a realidade “nua e crua” demais.
Refúgios assim podem ser importantes, nem sempre estamos prontos para resolver os problemas da vida. Além disso, possuir um refúgio para não se estressar em excesso pode ser um bom recurso para manter a saúde mental. Mas não dá para viver em um mundo de fantasia. Precisamos nos capacitar e enfrentar os problemas, viver “a vida como ela é”, como disse o grande Nelson Rodrigues.
Rodrigo Tavares Mendonça é psicólogo e especialista em psicoterapia de família e casal. Contato: (37) 9.9924-2528