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São, da Sãozica | Artigo

Imagem: Ilustração/reprodução da internet

Me lembro, apesar de ser muito criança, pouca idade, talvez sete ou oito anos… Talvez, oito, visto que com nove anos meus pais se mudaram para a cidade de Araraquara, no estado de São Paulo e eu perdi contato com a família. Amigo de Júlio e Douglas, amigo de Débora e Anamirdes, filhos e sobrinhas de Sãozica, netos todos de dona São.

Fiquei com esta lembrança vívida na memória pois era a última casa, depois do “Morcegão”, no bairro Américo Silva. Logo depois desta casa, já se iniciava a lagoa do Chico Cadeado que naquela época era enorme, com muita água e se ligava no seu lado direito à ‘aguadas’ que, em época de chuvas, emendava-se à Lagoa Verde. Virava um mar de águas na parte baixa do bairro Américo Silva, logo abaixo de onde hoje se localiza a Pharlab.

O seu “Cote”, era o avô desta turma toda. Trabalhou por vários anos nas fazendas dos “Pereira” e dos “Paulinelli’s” da cidade de Luz. O seu “Cote” quase não via. Ele ficava nas fazendas e de quinze em quinze dias, outras vezes, mês a mês, vinha rever a família, filhos e netos. Era sempre muito bem recebido por todos.

Tinham respeito por ele e pelos seus cabelos brancos, o que contrastava com a sua pele negra, cheia de marcas de expressão, de anos e dores. Tinha mãos muito grandes e fortes. Era um homem negro muito alto e forte. Os anos trabalhados moldou o seu caráter e personalidade. Era um homem taciturno, de poucas e raras palavras. Tinha um olhar profundo e arregalava os olhos quando tossia.

Acendia os seus cigarros com fósforos que ficavam soltos dentro do bolso da camisa. Um pedaço de uma caixa de fósforos fazia o contraponto para acender o fogo.

A dona São sempre tratava-o com muito rigor. Parecia que sempre estava a xingá-lo mas era a forma como ela cuidava dele desde sempre. Dona São falava alto e sua voz aguda, em alto volume, era sentida em quase todos os cômodos da casa. Seu grito ecoava a vários metros. No campinho, nos pés de jabuticaba do Chico Cadeado, na aguada, onde estivessem os netos, sua voz soava como ordem, ouvida em muitos lugares do bairro. Era rude com as palavras e quando necessário, maltratava.

Dona São tinha bom coração. Ajudava muitas pessoas. Cuidava de doentes, lavava roupas de quem precisava, sem reclamar. Talvez a única pessoa com a qual ela tinha realmente problemas era mesmo o marido, seu Cote.

O seu Cote limitava-se a balbuciar qualquer coisa, acendendo o seu cigarro de palha, seu companheiro. Vez por outra resmungava e saía de perto da São. Quando não, montava em sua bicicleta, indo embora para a fazenda, fosse a hora que fosse.

A Sãozica foi esposa de João Sicupira. João morreu cedo, jovem, na casa de 30 anos, deixando a Sãozica, com vinte e tantos anos e seis filhos. Como morava de favor numa casa nos fundos dos pais de João, sempre às turras com a sogra, logo com o falecimento do marido, retornou à casa da dona São com os netos todos.

A filha mais velha de Sãozica, a “Tina”, já trabalhava junto com Sãozica nas casas “boas” da cidade. Sãozica, nesta época, estava com duas crianças de colo, a mais nova com um mês de idade e a outra com onze meses, todas as duas “mamando” no peito ainda. E Sãozica tinha “muito”, mas “muito” leite.

Diziam todos que ela era uma “vaquinha” mesmo, visto que os “peitos” esguichavam leite nas visitas, quando estas se sentavam nos bancos de madeira nas varandas. Ela não podia se descuidar que “esguichava” leite em todos, de verdade…

Era considerada abençoada pelos vizinhos e amigos. Ninguém nunca tinha visto nada igual. Eram muitos os carros ‘chiques’ que vinham do centro a fim de trazer as crianças para a Sãozica “dar de mamar”. Ela tirava uma criança de um dos peitos e colocava outra criança, noutro… E outra mãe chegava e ela dava de mamar, entregando a criança anterior para a dona São. Ela chegava a amamentar quatro crianças pela manhã, além das suas. Também tirava ‘chuquinhas’ para entregar para as pessoas que pediam.

Certa vez cheguei eu mesmo a levar uma ‘vasilha’ para a Neuza, esposa do Célio, sobrinho do Valdote, com um pouco de leite para a Neuza colocar em machucados. Nunca tinha visto tal coisa.

Dona São era benzedeira. Aproveitava para ‘rezar’ para as crianças e para quem pedisse. Usava do leite da filha para molhar os dedos e passá-los no rosto e nas palmas das mãos das crianças, das visitas. Molhava as chaves dos carros no leite da Sãozica para afastar acidentes e proteger os bens dos ricos dos maus olhares dos transeuntes.

Levavam para a Sãozica muitas roupas, alimentos e presentes. Seus filhos se vestiam, dada a modéstia da época, muito bem. Como ganhava muitas frutas, balas, quitandas e doces, todos os amigos sempre estavam por ali na parte da tarde, visto que Sãozica e dona São sempre repartiam igualmente a todos, as iguarias que elas recebiam.

Apesar dos tempos difíceis, Sãozica acabava por manter toda a família dessa forma, graças às abençoadas mamas cheias de leite.

Após mudarmos para Araraquara, e depois para Iguatama, perdi contato com os amigos, perdi contato com a família, nunca mais os vi. E ficou na minha memória aquela quantidade toda de crianças sendo amamentadas pela Sãozica, e a fartura de alimentos e sobremesas na casa da dona São. Histórias que o povo conta…

Isaías Santos – autor
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