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Anota aí!: Crítica do filme ‘Medida Provisória’

Defender ou criticar “Medida Provisória” é um ato que, por si só, pode ser bem perigoso, por ser cheio de armadilhas, pois as chances são grandes de se deixar influenciar por informações extra fílmicas.

Por Luca Ramalho Rizzuti


No mínimo, é tão interessante quanto curioso – e alguns diriam até gozador se não fossem as claras propostas do filme, já bem explícitas de início – que o longa de estreia de Lázaro Ramos na direção cinematográfica, como drama de pegada low sci-fi pueril, áspero e sujo, com um Brasil distópico calcado no aspecto da discussão étnico-racial, com âncoras na tendência afrofuturista, já comece incrível e insuportavelmente intenso e tragicômico na sua introdução.

Acontece que o roteiro, escrito a oito diferentes mãos (geralmente, um mau sinal quando há tantos autores diferentes num mesmo roteiro assim!), introduz a diabetes de Antônio e a carência no estoque de insulina, sem que isto altere mais o desenvolvimento da trama e/ou da personagem na posteridade. Subtramas são esquecidas. O romance entre André e Sarah é abandonado, a decisão do assistente de Isabel (que depois é morto pela comunidade no afrobunker) é tomada às pressas. Mas o que me parece pior é a decisão de Lázaro em equiparar atos que só são iguais pela violência cometida (mas com causas e raízes diversas).

Esses senões até seriam levemente compensados pelo elenco poderoso: Taís Araújo tem um discurso intenso ao recordar a opressão sofrida pela mulher negra (voltarei a isso logo! Merece ser destacada!). Já Seu Jorge emprega o deboche como alternativa para encarar o racismo sistêmico, até perceber que a sátira não irá salvá-lo. E Alfred Enoch tem momentos de força na sacada de seu apartamento diante do mundo que normaliza e naturaliza a violência racial. Aí chegamos ao maior mérito de Lázaro: a celebração da pele negra em closes e a empatia com que racionaliza o racismo e enxerga aquelas pessoas podres por dentro. E, ainda que o desfecho seja utópico e não resolva a questão da MP 1888, tem consigo uma pretensa energia agregadora em forma de linguagem de cinema que reúne idades e artes pelo direito inalienável de existir, resistir e ser tratado com dignidade. Mas, como diz o velho ditado, de boas intenções até o Inferno está cheio e, ora, é exatamente aí onde reside os maiores perigos do filme.

O filme já abre com a tentativa inglória de um representante negro – um dos protagonistas, Antônio (Alfred Enoch, muito conhecido por sua interpretação na saga Harry Potter, como Dino Thomas), da ala jurídica de refutar o racismo institucionalizado. O recuo da câmera – como se fosse um travelling às avessas – que apresenta o plenário esvaziado reforça essa dimensão de um teatro armado pelos juristas brancos. Sim, pois a tal lei arbitrária, primeiramente, cria uma espécie de programa social que “permite” aos negros voluntariarem-se para voltar à África. Mais tarde, como provavelmente a “oportunidade” absurda não tem a aderência pensada, ela se torna deportação forçada de todo e qualquer cidadão de “melanina acentuada” (novo nome para negros). Com isso, as ruas se tornam um cenário de guerra racial e muitos dos “melaninados” passam a se reunir em “afrobunkers” (novo nome para quilombolas – nisso, o filme usando do recurso da nostalgia como dispositivo de resistência: olhar para o passado dos quilombos para imaginar um contexto de movimento de resistência negra neste contexto turbulento).

Seu Jorge, com sua caricata postura como o blogueiro excessivamente beligerante, sempre de celular em mãos, denunciando as vilanias do Estado, em meio às tiradas bem-humoradas e sarcásticas, é o destaque não apenas da fase de apresentação, mas de todo o elenco. No entanto, ele não é o protagonista. Isso fica claro desde as primeiras cenas de apresentação de personagens. Esse posto é dividido entre Alfred Enoch (já mencionado) e Taís Araújo, ambos muito bem em seus respectivos papéis. Aliás, em termos de atuação, são os melhores que o filme têm a oferecer, juntamente com Adriana Esteves, encarnando seu tipo vilanesco das novelas da Globo.

Eles interpretam o casal de heróis bem-sucedidos em suas profissões consideradas nobres na sociedade brasileira (advogado e médica). Interessante e curioso como a postura mais agressiva e beligerante na política dele em nenhum momento se choca com a confortável e voluntária alienação dela. As nuances no enfrentamento dos absurdos que estão acontecendo nem chegam a engatilhar um conflito doméstico ou algo do tipo que realmente o valha. Eles se amam, ponto. E os dois terão um filho logo. É que o filme já julga necessário para que o espectador saiba. O filme não se mostra nada interessado em criar polarizações entre o núcleo principal de personagens – até porque dentro do que acontece no filme todo, quando os rumos os separam, para só reuni-los no final, seria uma divergência sem nexo e extremamente desnecessária. Tanto é que a personagem Capitu, de Taís Araújo, só tem seu grande momento pra si, em todo seu “brilho interpretativo”, chamemos assim, na cena de seu discurso no afrobunker, em seu “lugar de fala”, no momento do julgamento do branco a ser excomungado da comunidade, ou morto, ou em vias de decidirem se ele realmente poderia ficar. Um momento super momento expansivo para a atriz se entregar em seu monólogo inflamado, e de catarse para a personagem.

Capitu é encenada e filmada com uma sensibilidade que remete ao aspecto sensual e consideravelmente até dissimulado da personagem homônima de Machado de Assis – figura esta que inclusive ganha vez ao ter filmada um plano com nome de uma rua que assim se chama -, e que, aliás, vale salientar, era um escritor negro, mas que era constantemente esbranquiçado com a forma que suas fotografias de época o deixavam diante da iluminação.

E a Medida Provisória que dá título ao filme tem nome de 18.88 – o que já remonta à data de abolição da escravatura no Brasil, com a Lei Áurea.

Sacadas que por mais criativas e inteligentes que até sejam, ficam rasas mesmo como detalhes a serviço de um detalhe com articulações tão primárias e pífias.

Além disso, o filme parece ter uma temporalidade excessivamente dilatada, de modo que cria muitas “barrigas” narrativas. E faz com que a 1h35 de filme pareça mais tempo do que realmente é. Sinto que muita coisa acontece (o que de fato é verdade), mas ao passo que, para todos os efeitos, pareçam pouquíssimas ao mesmo tempo.

A realidade apresentada é distópica – sim, uma conjuntura social de extrema opressão, caracterizada por um Estado que utiliza meios constitucionais para ser fundamentalista -, mas não como uma autocracia e sistema repressivo latente e visível, ou mesmo estabelecida, como na maioria do filme que o espectador possivelmente está acostumado, especialmente se vindo de uma vertente hollywoodiana, mas de um afrofuturismo como resistência velada – ao menos, até seu final, com aqueles atos de protestos com “violência simbólica” ao som de Elza Soares na trilha. E embora essa noção do “estamos seguindo os trâmites da lei” não seja discutida por qualquer personagem, ela aparece rapidamente na transmissão da sessão no congresso em que os parlamentares votam uma lei desumana – não por acaso, a cena lembra a votação que encaminhou o impeachment-golpe que derrubou a presidente/presidenta do Brasil Dilma Rousseff em 2016. Portanto, estamos diante de um recorte de um país que já legalizou e institucionalizou a discriminação.

Nesse sentido, Ramos acaba revelando um possível potencial do texto que não depende tanto das ilustrações e que, a partir da encenação com os atores, evidencia as suas ideias de forma mais fluida – afinal de contas, “natural” não seria uma palavra bem empregada aqui já que tudo depende de apelar ao caricato – (no sentido até cru da palavra, como se cada situação já exigisse uma reação sob encomenda, porém em puro overacting) – parece até que, além de impactante, de certa forma mais orgânico e íntimo do que o restante do filme e, consequentemente, lida melhor com uma possível unidade.

Contudo, os problemas rítmicos não demoram muito a aparecer. Logo, é uma pena que Lázaro se enrola tanto pra chegar a esse ápice. O filme não constrói uma tensão gradativa até o seu clímax, mas vai se pontuando com alguns blocos isolados de acontecimentos que, além de cansar a evolução narrativa, elabora apenas um dos lados do conflito, por vezes gerando polarizações que beiram a vergonha alheia e falsas simetrias “espertinhas”, o que torna a construção dramática dos antagonistas fraca.

E no que o filme me remete parece que é a ideia de que o cinema retratista-satírico, sem muitas serifas, é mais genuíno é quase tão antiga quanto o próprio cinema. Nesse sentido, vale mesmo destacar que “Medida Provisória” acaba sendo justamente isto: um longa que se pretende como um registro “posudo e espertinho”, que, apesar de a princípio engajado em temas de causas muito nobres.

Seja na literatura, no teatro, no cinema ou em qualquer outra forma de expressão artística, a sátira política sempre representou, em mãos talentosas, uma forma de expor as falhas e absurdos da sociedade, erguendo um espelho capaz de acentuar traços específicos que, normalmente pelo exagero, se tornam óbvios o bastante para despertar a atenção daqueles que talvez os ignorassem.

Agora, se pesada a mão em contraste com uma sensibilidade até extremada do cineasta para lidar com sua temática, pode resultar em filmes desastrosamente autocondescendentes.

Apesar do seu aparente minimalismo, é inegável que “Medida Provisória” até vem carregado com um arsenal de referências bastante pesado. Como vários longas nacionais lançados nos últimos anos, o filme remete diretamente ao cinema político-brasileiro como mais uma peça crua de um meio de Comunicação que muitas vezes pode ser falho, sobretudo no que tange ao direcionamento de um “público alvo”. Se de início, aparenta ser uma obra bem resolvida com seus rumos, o filme toma caminhos que o fazem parecer ridiculamente perdido. De modo que não sabe se quer ser um exemplar para o grande público brasileiro e comunicar especialmente com grande parcela da juventude contemporânea, mas nichar essa audiência com o apelo de sua mensagem. É como se o filme já quisesse ser um jovem blockbuster nacional e funcionar como um anti-blockbuster ao mesmo tempo, renegando este apelo e exigindo estudos por parte do espectador mesmo antes de ser inteiramente compreendido e sentido em seu todo.

É indiscutível que essa tendência retratista-política contemporânea – cada vez mais em voga no Brasil e no mundo – pode se transformar, em certos casos, em um fetiche perigoso. Uma busca poética condescendente que meramente se apropria da realidade em questão para evidenciar uma sensibilidade muito mais vaidosa do que de fato preocupada com a sua temática. Ora, aqui Lázaro parece extremamente preocupado, acerta na construção de mundo com roteiro inspirado na peça “Namíbia, não”, escrita em 2011 por Aldri Anunciação, mas se perde em seus caminhos.

Creio, como vi apontarem, e não só em meus meios de interlocução e diálogo – o crítico Michel Gutwilen também aponta isso em seu texto sobre o filme, “Medida Provisória” pode ser resumido por uma de suas sequências, que inicialmente é ambígua ao extremo e que, de minha parte, considero super infeliz. Há uma certa montagem paralela, lá para quase o final do filme, quando as tensões raciais atingem o auge, que alterna duas cenas. Em uma delas, um personagem negro é morto pela polícia (instrumento do governo branco), na rua. Na outra, um personagem branco é morto por um grupo de negros, dentro de um afrobunker. Enquanto tudo isso acontece, há uma narração em off promovendo um discurso de que as pessoas se perderam e são todas uma só, “com suas peles virando espelhos”.

Partindo do pressuposto que a moral de um filme não está em sua história, mas em sua mise-en-scéne — no modo como o diretor utiliza a linguagem cinematográfica — o que é possível pensar da associação gerada por esse tipo montagem e a narração em off? Ao botar as situações lado a lado, falando que todos são “espelhos uns dos outros”, a reação do oprimido é reduzida ao mesmo patamar da violência do opressor, como se ambos estivessem errados no mesmo nível em seu emprego da violência, o que me parece bastante reducionista e ingênuo. Essa emblemática sequência parece ir na direção contrária do que se espera de uma obra com narrativa sobre racismo.

Embora o filme apresente dualidades e pontos de partida para reflexões aparentemente complexas, ricas e profundas – como o que define a negritude: se é a mera cor da pele, com “melanina acentuada”, ou se são as origens, todo um histórico negado, um passado trágico e sombrio de agruras, se é o cabelo, ou qualquer outro detalhe? Por exemplo, existe uma personagem na narrativa que é facilmente confundida com uma pessoa branca: a menina albina. Mas ela é essencialmente negra também ali, naquele contexto e mais especificamente por suas raízes – pouco faz por elas, deixando tudo no meio do caminho para tornar a obra apelativa. Mesmo que pareça dócil e sensível, com seu tato no final, ao som de “O Que Se Cala”, de Elza Soares, imaginando a concretização de um sonho possível a partir da realização do utópico num cenário pessimista por natureza – como o que exclama Antônio em certo momento “como fomos chegar até aqui?!”.

O resultado é lisérgico, para dizer o mínimo, mas também muito ‘truncado’ porque o próprio discurso adotado por Lázaro não me parece conversar direito com o material, uma interpretação confusa que não tem disposição ao diálogo, e aí a narrativa vai de mal a pior muito rápido.

O que levanta uma questão: até que ponto o discurso é capaz de sustentar sozinho o filme? Tanto que, a título de complementação, tem sido cada vez mais comum, nos dias de hoje, uma parte do público julgar um filme muito mais pela importância do seu tema e não tanto pela natureza cinematográfica do trabalho. Nesse ponto, para grande parte dessas pessoas, o grande impacto de uma obra não acaba por ser definido, justamente, pela forma que o filme concilia o conteúdo e a linguagem cinematográfica – que deveria ser o cerne de toda boa obra, em definição básica, diria.

Ora, o cúmulo do ridículo – chega a ser ofensivo, de tão forçado – cena em que o personagem do Emicida toma a arma de um companheiro e entrega no lugar um exemplar do livro “Entre o Mundo e Eu”. De novo, que tipo de mensagem se espera passar ali? E olha que o filme sai sem lógica mesmo com um letreiro final que deixar mais claro seu propósito.

É um problema que nem parte da caricatura que o realizador faz dos vilões, já que isso funciona muito bem dentro do diálogo com o cinema de gênero e com a premissa direta da história, mas sim na forma como baseia o seu apelo muito mais em uma comoção externa ao filme do que em uma lógica interna da obra.

A grande comoção contra o “homem branco malvado” que, com certeza, já possui um respaldo histórico que a legitima de todos os modos, mas que o filme usa de forma genérica na falta de construção e concretização de muito do que foi apresentado – e consequentemente até do conflito em si. O trabalho de Ramos não parece realmente interessado em discutir os aspectos dessa crueldade, já que ela existe unicamente para polarizar ao máximo com os personagens bons. E aí rola uma síndrome de “Bacurau” e de “Democracia em Vertigem”: parte de uma comoção em voga não para refletir sobre a crueldade do espectro político, mas para meramente usá-la como um dispositivo de apelo emocional fácil.

É um filme que rejeita essa perversidade, mas como um aspecto das sociedades humanas (o que me parece até consideravelmente anti-poético). A maldade se torna apenas um dado que serve a um jogo que deveria ser catártico, mas, apesar de vários momento de uma violência visual gloriosa, mas simbólica, e de um ato final forte, não deixa de soar um pouco simplista nas suas motivações e realizações, o que é lamentável.

Defender ou criticar “Medida Provisória” é um ato que, por si só, pode ser bem perigoso, por ser cheio de armadilhas, pois as chances são grandes de se deixar influenciar por informações extra fílmicas. E a obra pode até ser muitas coisas, mas “sutil” (uma palavra que vi alguns usarem para descrevê-lo) não é uma delas. O filme usa suas alegorias penduradas no pescoço. Não acho que isso seja necessariamente um problema, mas parece que alguns estão orgulhosos só porque “interpretaram” o óbvio. Sim, acho que o filme é óbvio, que o cineasta adota uma condescendência que afasta quem mais deveria atrair e que suas muletas de montagem também se excedem.

Essa minha postura não deveria ser vista como problemática diante do filme, contudo. Pois concordo com quase tudo que o filme defende, odeio tudo o que condena e acho que Ramos o realizou com ótimas intenções. Mas isso é algo que discuto em muitos dos meus textos: um critério péssimo pra avaliar a qualidade de um filme é o simplesmente moral. Uma obra pode representar tudo que você odeia e ser brilhante ou vice-versa. (Ou, no caso de “Não Olhe para Cima”, de Adam McKay, e ser apenas… um filme okay, na melhor das hipóteses.)

Como crítico, meu papel é não ignorar isso.

Acontece que, para se fazer cinema, somente boas intenções nunca deveria ser o suficiente. E ver que o cinema segue nesse caminho, no mínimo, é de deixar preocupado.


Luca Ramalho Rizzuti

 

Sou Luca Ramalho Rizzuti. Tenho 21 anos. Sou nerd e, desde sempre, cinéfilo de carteirinha. Graduando em Cinema e Audiovisual (2019-2022), no Centro Universitário UNA (Belo Horizonte, MG).
Busco enriquecer o meu trabalho na ampla área do audiovisual com meu repertório de conhecimento teórico-prático em roteiro, fotografia e direção e, em outro campo do cinema, a crítica, além de continuar sempre aprendendo e inovando dentro do meu portfólio.
Amo escrever, conversar… em suma, falar sobre esta das minhas maiores paixões da vida: o Cinema.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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