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Depoimentos de pessoas trans revelam a urgência de se debater inclusão no mercado de trabalho e acesso ao nome social

Nenhum país se torna o que mais mata pessoas transsexuais no mundo da noite para o dia. Antes, é necessário não reconhecê-las, negar empregos e direitos fundamentais, assediá-las e restringir o seu acesso aos espaços públicos.

João Alves


No dia 29 de janeiro foi celebrado o Dia Nacional da Visibilidade Trans, data de extrema importância para a luta de travestis e de transexuais por direitos, pelo reconhecimento de suas pautas e de suas identidades. 

Ainda que travestis e transexuais, aos poucos, venham conquistando representatividade na mídia e uma maior atenção da sociedade civil às suas demandas, os números são preocupantes. De acordo com o Dossiê de Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras, organizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), só em 2021 foram 140 casos de assassinato de pessoas homens e mulheres trans. 

Para além do número, outro fator preocupante é a forma como essas violências foram comunicadas pela mídia. No ano passado, 10% dos casos notificados não respeitaram a identidade de gênero das vítimas e 17% dos casos expuseram seu nome de registro – muitos deles sem sequer mencionar o nome social. 

Além da violência física – ainda muito comum – outra violência rotineira no dia a dia de travestis e transexuais é a discriminação e o constrangimento em locais públicos, como banheiros e demais espaços geralmente separados por gênero. Em novembro do ano passado, o Jornal Cidade, em parceria com o Sou+Lagoa, denunciou um caso de transfobia que aconteceu na festa Secrets, em Lagoa da Prata

Na ocasião, duas mulheres trans, Dhully Fantine e Paolla Martins, foram impedidas de usarem o banheiro feminino por uma segurança que as seguiu até o local. A situação adquiriu uma camada extra de violência quando as duas foram orientadas a usarem o banheiro masculino.

“Aquele momento foi muito constrangedor e de tristeza por estar passando aquela situação, [nos] expondo na frente de muitas mulheres”, falaram Dhully e Paolla ao Sou+Lagoa e ao Jornal Cidade.

A organização da festa se disse surpresa com o ocorrido e comentou que a segurança do evento é terceirizada. No entanto, até o momento da publicação da reportagem, Dhully e Paolla comentaram que não foram contactadas pelos responsáveis para esclarecimentos ou até mesmo um pedido de desculpas pelo ocorrido. 

Mercado de trabalho

Outra questão que merece destaque ao comentarmos sobre as pautas da comunidade de transexuais e travestis é a política discriminatória do mercado de trabalho, constantemente validada pelos setores mais conservadores da sociedade. Conforme estimativa da Antra, 90% das travestis e transexuais brasileiras são obrigadas a se prostituírem por não conseguirem uma vaga formal e apenas 6% delas estão inseridas no mercado de trabalho com carteira assinada. Em outro relatório da Associação, 88% dos entrevistados responderam que as empresas não estão preparadas para contratar ou garantir a permanência de pessoas trans em seus quadros

O Jornal Cidade, em parceria com o Sou+Lagoa, conversou com Paolla Martins sobre as dificuldades enfrentadas por ela e outras muitas mulheres transexuais no mercado de trabalho de Lagoa da Prata. 

“Ser trans no interior e enfrentar a transfobia e o preconceito diário… É não conseguir alugar uma casa para morar só por ser trans; quantas e quantas portas batidas na cara procurando emprego simplesmente por chegar na entrevista e ser quem eu sou. As pessoas olham sua aparência e sexualidade, não o seu caráter e o seu profissionalismo… O que falta é oportunidade, porque talento todos nós temos! Espero que um dia mude e que as pessoas comecem a nos enxergar que somos como todos”, respondeu Paolla. 

Além disso, Paolla ressaltou que resistir é a palavra de ordem em seu dia a dia para superar os obstáculos de uma sociedade ainda pautada no preconceito e no ódio ao diferente.. 

“Ser trans é transcender a si mesmo, é encarar o espelho com amor e o mundo com coragem. Ser trans é entender que não é errado ser diferente, e que ser diferente significa que você é forte o suficiente para não ter que ser igual. Ser trans é conviver com o medo, sair de casa sem saber se vou voltar. Sou trans com ousadia de não deixar que a transfobia que me assola lá fora seja as grades da minha prisão dentro de mim mesmo. Ser trans é resistir“, finalizou. 

Tatiana Ribeiro, que se considera uma pessoa não-binária, também comentou que o mercado de trabalho deveria dar mais atenção e acolher este público: 

Hoje o mercado de trabalho é muito difícil para esse público trans. Você pode pegar duas pessoas em uma entrevista de emprego, uma pessoa trans com barba e nome feminino, e uma mulher hetero, nos padrões que a sociedade gosta, peitões, unha feita, rostinho angelical. Eu te garanto que na entrevista eles vão ficar com a mulher hetero, e a trans não consegue”, afirmou. 

Nome social

Ao contrário do nome de registro, dado logo após o nascimento e de acordo com o sexo biológico, o nome social é aquele que travestis e transexuais adotam e com o qual elas se identificam em razão do gênero ao qual pertencem. De acordo com o advogado e ativista LGBTQIA+, Caio Benevides Pedra, o nome social é um direito de pessoas transexuais, travestis e não-binárias, e uma política pública que existe, atualmente, na forma de decretos. Por isso mesmo, este direito ainda é precário, já que falta uma lei federal para regulamentar o nome social em todas esferas de forma definitiva. 

Dhully Santos, em contato com o Jornal Cidade e o Sou+Lagoa, contou à reportagem sobre o longo processo que enfrentou para reivindicar o seu nome social – foram quase 11 anos de espera. 

“Sou Dhully Santos, sou mulher trans e moro em Lagoa da Prata. Por coincidência no mês de janeiro, mês da visibilidade trans, estive em processo de retificação do meu nome, para mudar todos os documentos com nome e sexo feminino, por direito nosso. Foram muitos anos para chegar até aqui para mudar e esse é um grande passo para mim e todas trans que querem retificar o nome. Não eram todos lugares que aceitavam nome social e éramos, algumas vezes, expostas e voltava tudo novamente. Mas agora, com os documentos arrumados, a vida vai ser mais digna! Detalhes que mudam uma vida inteira . Foram mais de 13 certidões atualizadas para conseguir e tenho 11 anos de transição, e agora que vai sair”, comentou ela.

Dhully Fantine (Foto: arquivo pessoal)

Desafios 

Para além dos temas listados e comentados pelas entrevistadas, o caminho das pessoas transexuais e travestis rumo à equidade de direitos ainda é longo. Tão importante quanto – ou mais importante até – que validar leis que garantam a essa população acesso aos serviços básicos, atenção integral à saúde, segurança, emprego e dignidade, é garantir que a sociedade se despregue dos seus preconceitos e noções de gênero advindos de uma visão determinista, ultrapassada e totalmente desligada da realidade, e passe a acolher essas pessoas da forma que ela merecem e necessitam.

O papel da família neste processo é indispensável. São muitos os relatos de pessoas LGBTQIA+ que vivem reclusas da sociedade e, por isso, desenvolvem ansiedade, depressão e dependência de substâncias químicas, exatamente pela não aceitação de familiares da identidade, expressão e relacionamentos amorosos delas. Respeitar e conviver com as diferenças é não só o caminho para uma sociedade sem violências, como também o caminho para uma sociedade mais harmônica, justa e igualitária.

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