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Artigo de Opinião: Narciso não sabe nadar

Há quem diga que essa seja uma tendência do humano, animal narcisista desde que o mundo é mundo. “O inferno são os outros”, diz a famosa frase de Sartre, que aponta para essa velha tendência.

Helder C. S. Cardoso

Cada pessoa, cada grupo, cada povo, estabelece uma relação singular com o outro, o estrangeiro, o diferente. Há posturas mais abertas, acolhedoras, outras mais protecionistas, fechadas. Há posturas mais curiosas, interessadas nas diferenças que o outro traz consigo, outras mais desconfiadas, conservadoras, mais apegadas à sua própria maneira de ver e fazer as coisas.

Atualmente, em tempos de globalização, as antigas fronteiras que separavam (e organizavam) os diferentes povos, religiões, culturas, não possuem a mesma nitidez que antes, e vivemos em um mundo no qual somos literalmente forçados a conviver com pessoas que pensam, agem e vivem de forma radicalmente diferente da nossa. E não se pode negar que tal convívio seja desafiador. A convivência entre muçulmanos e cristãos na Europa e Estados Unidos, entre judeus e palestinos no Oriente Médio, entre conservadores e progressistas por todo o mundo, tudo isso coloca imensos desafios a nossa capacidade de lidar de forma minimamente saudável e ética com as diferenças.

De um lado, há os discursos fáceis que pregam de forma simplista a tolerância e por vezes buscam mascarar as dificuldades desse convívio, o que não nos ajuda muito a realmente tornar a convivência com as diferenças mais interessante na prática. De outro lado, temos os discursos que buscam restabelecer um mundo anterior à globalização, com fronteiras claras separando e organizando o mundo, com “cada um no seu quadrado”, por assim dizer. Tal desejo de voltar ao passado logicamente não é realizável, além de ser eticamente muito problemático. A xenofobia (ódio ao estrangeiro), o racismo e a homofobia são expressões extremadas desse tipo de discurso.

Sigmund Freud, pai da psicanálise, em suas pesquisas a respeito do desenvolvimento infantil, observou que em uma certa fase do desenvolvimento (a chamada “fase oral”) a criança realiza uma operação simbólica na qual ela introjeta aquilo que ela considera bom e externaliza o que considera mau. Nesse momento, a criança considera que aquilo que é bom faz parte de seu Eu, e o que é mau está fora de si, está no outro. Esse é o momento inaugural do chamado narcisismo infantil, e é fundamental para o desenvolvimento da auto estima, do amor próprio do sujeito. Porém no caso de pessoas demasiadamente narcisistas, cheias de si, metidas a besta, como diz a expressão popular, pode-se dizer que elas ficaram “estacionadas” nessa fase do desenvolvimento, de certa forma. Trata-se de uma lógica de funcionamento na qual o sujeito tende a supervalorizar suas próprias qualidades e a não admitir seus próprios defeitos.

E é justamente essa a lógica daquele que rejeita o que vem do outro como sendo mau, feio, indigno. Trata-se de uma visão simplista das coisas, pouco madura, que não consegue enxergar (ou admitir) as próprias falhas e mazelas nem reconhecer os méritos e belezas que o outro possui. “É que Narciso acha feio o que não é espelho”, já dizia a canção do grande Caetano Veloso.

Há quem diga que essa seja uma tendência do humano, animal narcisista desde que o mundo é mundo. “O inferno são os outros”, diz a famosa frase de Sartre, que aponta para essa velha tendência. Mas o ser humano é habitado por tendências contraditórias, e nesse caso talvez seja mais interessante dar vazão a nossas tendências mais generosas, mais abertas à diferença. Vale a pena aqui recordar o mito grego de Narciso, aquele que de tão apaixonado pela própria imagem refletida na água, acabou morrendo afogado. Tomemos cuidado para não nos afogarmos também.

 

Helder C. S. Cardoso é graduado em Psicologia (PUC Minas) e Especialista em Saúde Mental (Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais).

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